«Uma forma de o medíocre convencido imitar a grandeza é não dizer mal de ninguém.»

Vergílio Ferreira (1919 - 1996)


Pinceladas

20 de fevereiro de 2010

Ora aqui está um trecho digno de registo

«Nos seus acessos de misoginia o médico costumava classificar as mulheres consoante o tabaco de usavam: a raça Marlboro-sem-ser-de-contrabando lia Gore Vidal, passava o verão em Ibiza, achava Giscard d'Estaing e o príncipe Filipe muito pêssegos e a inteligência uma maçada esquisita; o tipo Marlboro-de-contrabando interessava-se por design, bridge e Agatha Christie (em inglês), frequentava a piscina do Muxaxo e considerava a cultura um fenómeno vagamente divertido quando acompanhado do amor do golfe; o género SG-Gigante apreciava Jean Ferrat, Truffaut e o Nouvelle Observateur, votava Socialista e mantinha com os homens relações ao mesmo tempo emancipadas e iconoclastas; a classe SG-Filtro tinha o poster de Che Guevara na parede do quarto, nutria-se espiritualmente de Reich e de revistas de decoração, não conseguia dormir sem comprimidos e acampava aos fins-de-semana na lagoa de Albufeira conspirando acerca da criação de um núcleo de estudos marxistas; o estilo Português-Suave não se pintava, cortava as unhas rentes estudava Anti-Psiquiatria e agonizava de paixões oblíquas por cantores de intervenção feios, de camisa da Nazaré desabotoada e noções sociais peremptórias e esquemáticas; por fim, o lumpen do tabaco de mortalha enlanguescia ao som dos Pink Floyd em gira-discos de pilhas junto à Suzuki do amigo de ocasião, adolescentes fazendo reclame aos amortecedores Koni nas costas dos blusões de plástico. À margem desta taxonomia simplificada situava-se o grupo da Boquilha, menopáusicas donas de boutiques, de antiquários e de restaurantes em Alfama, tilitantes de pulseiras marroquinas, saídas directamente dos esforços dos institutos de beleza para os braços de homens demasiado novos ou demasiado velhos, que lhes ajardinavam as melacolias e as exigências em duplexes a Campo de Ourique, inundados na voz de Ferré e dos bonecos da Rosa Ramalho, e onde as lâmpadas indirectas tingiam os seios gastos de uma penumbra púdica e favorável.»

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António Lobo Antunes (1942-)
in Memória de Elefante

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