«Uma forma de o medíocre convencido imitar a grandeza é não dizer mal de ninguém.»

Vergílio Ferreira (1919 - 1996)


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20 de julho de 2010

O paradigma social da dicotomia das origens

Não é fácil antever no que redundará cada um de nós, antendedo ao enredo humano e material que nos cerca, quando crescer e se formar como pessoa ou como ovelha. Compreende-se com relativa facilidade a teia e cruzamento de opções à nossa disposição, sempre afectadas por variáveis socio-económicas manipuladoras de um resultado traduzível em pessoas ou em bestas, isto, claro, com toda aquela correcta carga de subjectividade inerente. Deste modo, na nossa sociedade, ocidental e evoluida, a dicotomia classificatória de nosotros quando vimos a este mundo, é, sem merdas, a seguinte.
Um tipo nasce em berço de ouro (vou reconduzir isto a personagens e figuras da realidade ianque, façam depois a analogia), familia de classe média alta (ou superior, isto são os mínimos), segura, estável, teatral; tem as oportunidades e o suficiente cenário para singrar na vida, para elevar mais um patamar ou dois o nivel de vida dos progenitores; vai para Harvard, tem a bolsa de mérito, é bom aluno, não é um ser humano genial e supremo, mas não compromete; veste-se bem, mas não demasiado bem, tem ideias e interesses legítimos e pouco chocantes, um tipo feliz e sem ambições desmedidas, mas com algumas ambições. No que é que este cidadão vai redundar, atendendo aos elementos da nossa equação?, e esta equação é a de padrões minímos. As hipóteses são as seguintes:
1. Vai ser um filho da puta arrogante e intratável para quem não tem origens como as dele, vai contribuir para fechar o círculo social em que vive e torná-lo mais exclusivo, a natureza das suas origens, do seu meio, das suas oportunidades resulta da exclusividade. O lema de vida será algo do tipo, quem nasce lagartixa nunca chegará a lagarto, é assim que as coisas são, etc., etc...
2. Revolta-se. Caga para a família e para os princípios de origem incerta e para os valores intocáveis, para o círculo fechado e para as exclusividades. Sente repulsa pela mentalidade do tipo do "1.", assume que teve sorte e aproveita-a mas não se inibe de oferecer aos outros as possibilidades que teve.
3. Abdica de tudo, vai viver para uma gruta em Big Sur, ouve Joan Baez, e quem passa por ele está muito longe de adivinhar que teve natais felizes e prósperos. Não é um indigente, vive assim por opção.
Alguém teve o azar de nascer numa família sem grandes meios, que conta os tostões, que é humilde e temente a Deus, mas sem aquelas merdices megalómanas dos "de bem" quase fanáticos e reverentes a instituições conexas com a Igreja; os pais não tiveram grandes estudos nem exercem profissões liberais, ou têm empregos precários, ou até mesmo estáveis mas mal remunerados; tinha de estar entre os melhores da turma, mas nunca tinha o aspecto certo, nem a cultura certa, nem os interesses certos dos de berço de ouro. Não estudou em Harvard, estudou onde foi possível, e aí, foi o melhor possível (quando estudou...), sempre com os pais a contar os tostões. Este cidadão pode resultar no seguinte:
1. Fiel às origens às dificuldades sofridas, apregoa uma sociedade com igualdade de oportunidades. Defende que todos devem partir de um ponto de partida em iguais condições, e por mais que lhe digam ser assim, ele sabe que, de facto, assim não é. Nunca teve sorte nem grandes vocações, vive numa situação similar à dos pais.
2. Transforma-se. A partir do momento em que consegue um canudo com distinção e vê portas a abrir, deixa de entender as suas raízes. Não compreende porque raio os seus pares não singraram como ele, acha-os uns mandriões, acha-os pouco esforçados. Tem um ego desmesurado, pois partiu em desvantagem face aos meninos de berço de ouro e ainda acabou por ultrapassá-los, ou pelo menos, igualá-los. Não gosta deles, mas não admite a sua secreta admiração pelo estilo de vida e pelas oportunidades que lhes foram dadas desde crianças, escondendo a motivação que isso sempre representou. Torna-se conservador. Diz a toda a gente que subiu a pulso, e isso, só isso importa. Tendencialmente é honesto, tal um merceeiro.
3. Trabalha e sobe na vida. Não esquece quem o ajudou e as origens humildes. Tem tudo aquilo que o seu esforço lhe deu. Sabe abdicar quando é preciso, e, no intímo, pensa como tipo do "1.". Detesta cagões e pavões. Considera-se mais um na grande odisseia do Homem. É honesto e não é muito de arriscar.
É claro que existem nuances e meios termos. Mas, independentemente disso, a meritocracia é uma coisa muito engraçada.

2 bastonada(s):

Daniel Geraldes disse...

Isto parece-me uma análise muito boa,por instantes pensei que estava a ler as "fabulasticas" teorias do Professor Marcelo Rebelo de Sousa. É que o teu post é uma anarquismo total,que resulta num profundo nim.

Bill disse...

Obrigado

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